Cuê-pucha!… é bicho
mau, o homem!
Conte vancê as
maldades que nós fazemos e diga se não é mesmo!... Olhe, nunca me esqueço
dum caso que vi e que
me ficou cá na lembrança, e ficará té eu morrer… como unheiro em lombo de matungo
de mulher.
Foi na estância dos
Lagoões, duma gente Silva, uns Silvas mui políticos, sempre metidos em
eleições e enredos de
qualificações de votantes.
A estância era como
aqui e o arroio como a umas dez quadras; lá era o banho da família. Fazia
uma ponta, tinha um
sarandizal e logo era uma volta forte, como uma meia-lua, onde as areias se amontoavam
formando um baixo: o perau era do lado de lá. O mato aí parecia plantado de
propósito:
era quase que pura
guabiroba e pitanga, araçá e guabiju; no tempo, o chão coalhava-se de fruta:
era um regalo!
Já vê... o banheiro
não era longe, podia-se bem ir lá de a pé, mas a família ia sempre de
carretão, puxado a
bois, uma junta, mui mansos, governados de regeira por uma das senhoras-donas e
tocados com uma rama por qualquer das crianças.
Eram dois pais da
paciência, os dois bois. Um se chamava Dourado, era baio; o outro, Cabiúna,
era preto, com a
orelha do lado de laçar, branca, e uma risca na papada.
Estavam tão mestres
naquele piquete, que, quando a família, de manhãzita, depois da jacuba de
leite, pegava a aprontar-se, que a criançada pulava para o terreiro ainda
mastigando um naco de pão e as crioulas
apareciam com as
toalhas e por fim as senhoras-donas, quando se gritava pelo carretão, já os
bois, havia muito tempo que estavam encostados no cabeçalho, remoendo muito
sossegados, esperando que qualquer peão os ajoujasse.
Assim correram os
anos, sempre nesse mesmo serviço.
Quando entrava o
inverno eles eram soltos para o campo, e ganhavam num rincão mui abrigado, que
havia por detrás das casas. Às vezes, um que outro dia de sol mais quente, eles
apareciam ali por perto, como indagando se havia calor bastante para a gente
banhar-se. E mal que os miúdos davam com eles, saíam a correr e a gritar, numa
algazarra de festa para os bichos.
— Olha o Dourado!
Olha o Cabiúna! Oôch!... oôch!…
E algum daqueles
traquinas sempre desencovava uma espiga de milho, um pedaço de abóbora, que os
bois tomavam, arreganhando a beiçola lustrosa de baba, e punham-se a mascar,
mui pachorrentos, ali à vista da gurizada risonha.
Pois veja vancê...
Com o andar do tempo aquelas crianças se tornaram moças e homens feitos,
foram-se casando e
tendo família, e como quera, pode-se dizer que houve sempre senhoras-donas e gente
miúda para os bois velhos levarem ao banho do arroio, no carretão.
Um dia, no fim do
verão, o Dourado amanheceu morto, mui inchado e duro: tinha sido picado
de cobra.
Ficou pois solito, o
Cabiúna; como era mui companheiro do outro, ali por perto dele andou uns
diaspastando, deitando-se, remoendo. Às vezes esticava a cabeça para o morto e
soltava um mugido... Cá pra mim o boi velho — uê! tinha caraca grossa nas
aspas! — o boi velho berrava de saudades do companheiro e chamava-o, como no
outro tempo, para pastarem juntos, para beberem juntos, para juntos puxarem o
carretão...
— Que vancê pensa!…
os animais se entendem... eles trocam língua!...
Quando o Cabiúna se
chegava mui perto do outro e farejava o cheiro mim, os urubus abriam-se, num
trotão, lambuzados de sangue podre, às vezes meio engasgados, vomitando pedaços
de carniça...
Bichos malditos,
estes encarvoados!...
Pois, como ficou
solito o Cabiúna, tiveram que ver outra junta para o carretão e o boi velho por
ali foi ficando.
Porém começou a emagrecer... e tal e qual como uma pessoa penarosa, que gosta
de estar sozinha, assim o carreteiro ganhou o mato, quem sabe, de penaroso
também...
Um dia de sol quente
ele apareceu no terreiro.
Foi um alvoroto da
miuçalha.
— Olha o Cabiúna! O
Cabiúna! Oôch! Cabiúna! oôch!...
E vieram à porta as
senhoras-donas, já casadas e mães de filhos, e que quando eram crianças
tantas vezes foram
levadas pelo Cabiúna; vieram os moços, já homens, e todos disseram:
— Olha o Cabiúna!
Oôch! Oôch!...
Então, um notou a
magreza do boi; outro achou que sim; outro disse que ele não agüentava o
primeiro minuano de
maio; e conversa vai, conversa vem, o primeiro, que era mui golpeado, achou que
era melhor matar-se aquele boi, que tinha caraca grossa nas aspas, que não
engordava mais e que iria morrer atolado no fundo dalguma sanga e... lá se ia então
um prejuízo certo, no couro perdido...
E já gritaram a um
peão, que trouxesse o laço; e veio. A mão no mais o sujeito passou uma
volta de meia-cara; o
boi cabresteou, como um cachorro...
Pertinho estava o
carretão, antigão, já meio desconjuntado, com o cabeçalho no ar, descansando sobre
o muchacho.
O peão puxou da faca
e dum golpe enterrou-a até o cabo, no sangradouro do boi manso; quando retirou
a mão, já veio nela a golfada espumenta do sangue do coração...
Houve um silenciozito
em toda aquela gente.
O boi velho
sentindo-se ferido, doendo o talho, quem sabe se entendeu que aquilo seria um
castigo, algum
pregaço de picana, mal dado, por não estar ainda arrumado... — pois vancê
creia! : soprando o sangue em borbotões, já meio roncando na respiração, meio
cambaleando o boi velho deu uns passos mais, encostou o corpo ao comprido no
cabeçalho do carretão, e meteu a cabeça, certinho,
no lugar da canga,
entre os dois canzis... e ficou arrumado, esperando que o peão fechasse a
brocha e lhe passasse a regeira na orelha branca...
E ajoelhou… e caiu… e
morreu...
Os cuscos pegaram a
lamber o sangue, por cima dos capins… um alçou a perna e verteu em
cima... e enquanto o
peão chairava a faca para carnear, um gurizinho, gordote, claro, de cabelos cacheados,
que estava comendo uma munhata, chegou-se para o boi morto e meteu-lhe a fatia
na boca, batia-lhe na aspa e dizia-lhe na sua língua de trapos:
— Tome, tabiúna! Nó
té... Nô fá bila, tabiúna!...
E ria-se o inocente,
para os grandes, que estavam por ali, calados, os diabos, cá pra mim, com
remorsos por aquela
judiaria com o boi velho, que os havia carregado a todos, tantas vezes, para a alegria
do banho e das guabirobas, dos araçás, das pitangas, dos guabijus!…
— Veja vancê, que
desgraçados; tão ricos… e por um mixe couro do boi velho!...
—
Cuê-pucha!…é mesmo bicho mau, o homem!
Pesquisa de:
Fabiana Thomaz
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