Por: João Simões Lopes Neto
- Conheci, sim, sr.,
o Binga Cruz, desde assinzinho...
Guri levado da
casqueira!...
E teve um fim que
nunca se soube... Pobrezinho... Andaria nos doze anos. Filho único.
O pai dele, o velho,
recebeu de regalo um bagual picaço sãozito das quatro patas, sem uma basteira;
e de rédea, um pensamento. E era mesmo para o andar dele.
Pois, amigo, se lhe
conto!...
Um dia, dezembro, sol
de rachar, com trovoada armada, andara o guri ninhando numas restingas que
havia sobre o fundo da roça, por detrás das casas. O chapéu estava já
abarrotado de ovos de tico-tico, de alma-de-gato, de corruíras, canarinhos,
sabiás...; era um entrevero bonito de cores e feitios diferentes.
De calcita
arregaçada, mui espinhado nas canelas e nos braços, o rosto vermelho e a cabeça
ardendo, o diabinho ainda gateava um ninho de tesouras, quando, do outro lado
da cerca, ouviu o assobio das avestruzes, pastando.
Ouviu, e fura daqui,
fura dali, varou a cerca para dar fé, bem à sua vontade.
Entre a roça e um
braço de banhado, que havia, formava-se uma rinconada mui boa para volteada: e
foi nisso que o guri pensou. As avestruzes seriam umas oito e uma tropilha de
filhotes, já emplumaditos.
Não se conteve, o miúdo:
pulou para o lado de fora, perto da bandada, e já correu sobre ela, de braços
abertos, aos pulos, aos gritos: os bichos se arrolharam, assustados, mas logo o
macho do bando ponteou para o rincão e tudo acompanhou.
Era o que o guri
esperava mesmo; ele queria, de por força, pegar uma, viva; mas só laçando...
Foi quando lhe
coriscou na idéia bancar-se no bagual picaço, do velho...
Se estava tão delgado
e lindo.., aquilo seria só amagar o corpo, chupar no beiço e rebolear o laço...
Nem era tento! Num - vá! - era avestruz a cabresto!
E correndo para o
galpão, enfrenou o pingo, atirou-lhe um pelego no lombo, passou a mão no seu
lacito e se foi a arriba!
Espiou para os lados
e mui de manso, a passo, saiu, sobre a cacimba, a encobrir-se numa reboleira de
chorões, que fazia uma sombra fresca, onde as galinhas se rebolcavam,
arrepiando as penas, assoleadas.
Mas tudo isto levou
seu tempo, de maneira que quando ele chegou ao rincão já as avestruzes
haviam-se atirado no banhado e bandeado; apenas, por descuidada ou mais
esfomeada, apenas uma se deixou ficar e agora não atinava com a passagem, e
quando o Binga, gineteando, deu em cima dela, então é que o bicho ficou mesmo
atarantado, e começou a gambetear zonzo, na enrascada.
O guri se esqueceu do
mundo!
Tocava o picaço em
cima do nhandu e atirava o laço... o bicho negaceava, e o laçador errava o
tiro... E vá outro, e outro... mas errando sempre, só de apurado!
Mas nisto o nhandu
deu com a boca do rincão, viu o campo largo, e fazendo umas gambetas fortes,
esparramando as asas, por fim aprumou o corpo e cravou a unha, num trotão
galopeado, de comer quadras!...
Mas o rapazinho
estava encanzinado: levantou o picaço no freio e bateu de trás!
Amigo! Que disparada!
Por tacuruzais e buracama de tuco-tuco, por cima das panelas de caranguejo, por
lançantes de coxilhas e moles das canhadas, salvando sangas e arrancando no
barral das lagoas, tudo era várzea lisa para aquela alminha de gaúcho!
Despistada pela
perseguição, a avestruz corria à toa. Corria. Depois foi mermando; e foi
afrouxando, até que se enredou numas macegas e caiu numa cova de touro. E
conforme caiu, já o guri estava-lhe em cima, atracado com ela, passando-lhe o
laço, maneando-a, vencedor, afinal!
E respirou, aliviado;
olhou o campo, silencioso, viu a casa lá longe, branqueando no verde do
arvoredo.
Como diabo ia ele
levar a caça, aquela?... E quando estava botando as suas contas, o nhandu deu
em patear, a se revirar todo e mal apanhou livre uma perna, priscou e se foi a
la cria, deixando o caçador no ora-veja!...
Aí o Binga fez um
jeito de choro de raiva, e mui desconsolado montou de novamente.
E voltou para casa, a
passo, porque o picaço vinha meio estaqueado, de quartos duros.
Com mil cuidados,
aproveitando ainda a hora da sesta tornou a meter o flete no galpão e mui
concho da sua vida foi para dentro, pedir à mãe - uma santa senhora, aquela
dona! - pedir uma tigela de coalhada, pra refrescar.
Na manhã seguinte o
picaço apareceu esticado na estrebaria: derreteu a graxa dos rins; morreu
arreganhado.
O velho ficou
buzina!... Quem foi, quem não foi...; afinal o próprio Binga, meio de orelha
murcha mas decidido, relatou a criançada, tintim por tintim.
Aí o velho andou
mal... ali no mais, à vista da peonada, quis sovar o filho... e quando o guri
viu o rabo-de-tatu no ar... quebrou o corpo, disparou e de vereda
encarapitou-se num matungo que estava de piquete, encilhado, e abriu campo
fora, sem rumo certo, ao deus-dará... Debalde o velho gritou-lhe - Pára aí,
menino! Pára aí, menino!
Qual! No peito do
gauchinho não cabia a vergonha daquele guascaço do rabo-de-tatu, que caía-lhe
em cima, se ele não foge...
A sia-dona não viu
nada deste passo; andava lá pra dentro, nos seus arranjos.
Passou o tempo.
Nunca mais houve
notícias do menino.
Campeou-se pelo
vizindário, saíram chasques a vários rumos e... nada!
O velho foi
descuidando das lavouras; já não ia ao rodeio nem montava a cavalo; nas
marcações ficava na porteira da mangueira, calado; pitava muito e passava os
dias passeando na quinta, na rua das laranjeiras, de chapéu nos olhos e de mãos
atrás das costas.
A peonada já nem
podia arranhar nas violas, porque o velho se enquizilava e mandava logo um
piazito dizer lá fora que não queria bochinchadas em casa.
Outras vezes dava-lhe
para arranjar alguma trança prendia a lonca e começava a tirar os tentos... e
de repente parava, suspirava... e torcia a mão, cortando ou fazendo entradas no
couro, e afinal picava tudo e não fazia nada, nem um botão, nem um passador
qualquer, de cacaracá...
Ou ficava horas e
horas, com os olhos perdidos naqueles descampados... olhando, olhando sempre,
mas sem ver nada... nem as pontas de gado nem os mesmos andantes, que às vezes
chegavam, pedindo pousada...
A velhita, essa,
então, dava lástima a gente se fixar nela...
Não se riu, nunca
mais, aquela senhora-dona. Chorar eu não vi: mas devia de chorar muito, porque
quando vinha pra mesa servir os hospes, trazia sempre os olhos vermelhos e algo
inchados.
Ajuntou num canto da
sala todas as cousas do Binga; os aperos, o laço: umas tamanquinhas já gastas;
um carretão de brinquedos, enfiadas de ovos, uma chuspa cheia de pelotas de
barro, argolas e ossinhos de mocotós; enfim não sei quantas mais bobages de
criança.., mas que tocavam no coração quando a gente pensava que o doninho
andava por esse mundo, de gaudério e teatino... como cachorro chimarrão,
comendo de esmola algum soquete ordinário e tinindo de frio, sem ao menos um
bichará esburacado...
E sempre buenaça; mal
chegava um andante, mandava logo um piá levar-lhe um mate, e ainda, à noite,
água para os pés; e de manhã, quando a gente ia agradecer a pousada, lá vinha
um naco de queijo ou meia vara de lingüiça, para fiambre, e outro amargo, pra o
estribo...
Quem sabia do caso
até nem falava nele... era tão penaroso o sofrer daqueles velhos, que não
diziam nada, que a gente entendia tudo...
E não havia hospe que
tivesse comido daquela mesa ou dormido naquele teto, que não desejasse ser ele
que pudesse um dia topar o guri desguaritado e trazê-lo, para o colo que
esperava sempre e que rezava sempre ao Nosso Senhor Jesus-Cristo, que, sendo
Deus, morreu perto da sua mãe...
A velhita finou-se
primeiro, e de pura pena foi por certo.
O vizindário em peso
acudiu ao velório; o enterro se fez na vila.
Pois desde a estância
até o cemitério - umas quantas léguas - o caixão veio sempre à mão. Mas não
pesava nada. Também - pobrezinha! - que pecados podia ela ter?...
E quando foi a hora
de o corpo cair na cova, que cada um atirou um punhado de terra, e que as
crianças quase todas suas afilhadas - e as mulheres desataram num pranto de
choro e até o coveiro se entreparou atristado, aí vi mais de um gaúcho
colmilhudo manoteando nas lágrimas que dos olhos lhes caíam, grandes e claras,
como as gotas d'água que caem do cartucho dos caetés...
Os parentes meteram
demanda... foi um arranca-rabo que durou anos...
E enquanto isso...
vancê sabe o que é casa sem dono!...
O Binga... quem sabe
lá. o que foi feito dele, por esse mundo de Deus, tão grande!...
Cuê-pucha!... Eu
desejava que ele aparecesse, só por causa do padre gringo!... Que sumanta o
guri lhe não havia de encostar!...
E... por Deus e um
patacão!... Eu dava as guascas e ainda ajudava a atar!...
Ora se não!...
PERSONAGENS PRINCIPAIS: Binga Cruz e seus pais.
Pesquisa de:
Fabiana Thomaz
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